terça-feira, 23 de dezembro de 2014

O peso da barra


Hoje parei uns momentos pra fazer uma reflexão sobre o ano e sobre o que eu me tornei.

Me dei conta que tornei parte de um grupo de pessoas. Um grupo que treina em garagens, edículas e até em partes esquecidas dentro de uma academia convencional. Um grupo que, muitas vezes, faz isso sozinho por não ter ajuda adequada. Faz isso contra todas as previsões e sem nenhum incentivo externo. Pelo contrário, temos que justificar nossas escolhas a todo momento aos nossos amigos e parentes. Para um atleta de força, o peso da barra é algo sagrado: Tem que estar ali exatamente o que ele pediu. Nem uma grama a mais ou a menos. Qualquer mudança nessa variável pode causar desde acidentes até sérios problemas éticos e de desvio de caráter. Porém, existe outro peso na barra. Um peso simbólico. O peso que realizamos o movimento em uma barra carregada em uma terceira pedida num campeonato é, com certeza, o menor peso de todos os que enfrentemos no nosso dia a dia e em nossas escolhas pessoais e profissionais para garantir que o próximo treino simplesmente aconteça. Nossa vida é solitária, sem incentivos, sem apoio financeiro adequado e distante daqueles que amamos (em alguns casos, isso até os afasta). Somos vítimas de nossa própria dedicação.

O peso simbólico é algo muito maior e muito mais profundo que o objetivo e preciso peso real. O peso real está definido e especificado no livro de regras e tem que ser daquela forma em qualquer lugar do mundo. Mas o peso simbólico tem a ver com o que define a pessoa como atleta. Esse peso a identifica e mostra como o atleta chegou até ali. É o peso de uma trajetória e das escolhas que ele fez. Esse peso simbólico nos faz continuar e melhorar. Nós persistimos e seguimos em frente após cada vitória ou derrota. Cada falha nos faz mais fortes e é um aprendizado de uma jornada de uma vida toda. Fazemos tudo isso porque todo esse sacrifício nos faz sentido e, dia após dia, nos transforma naquilo que nós somos: powerlifters.

Ser um powerlifter não é só glória e sucesso. É lidar com dores diariamente devido ao grande impacto do nosso treino. É treinar, muitas vezes, em condições bem abaixo do ideal. É abrir mão das pessoas que se ama para ir a um campeonato e encarar uma barra carregada com anilhas pra se realizar um movimento perfeito. É encarar uma viagem de 12 mil quilômetros para quebrar um recorde mundial e ouvir o hino de um pais que você nem mesmo se reconhece como fazendo parte dele. Mas tudo faz sentido pelo powerlifting e o que ele representa pra gente. Não estamos ali por pessoas, locais, países, federações ou fama. Estamos ali pela nossa identidade.

No momento em que fizemos história e quebramos algum recorde, isso mostra algo que todos nos temos mas os powerlifters tem mais que o resto da população: nós não nos contentamos com as regras do mundo. Os recordes são, pra gente, algo a ser quebrado. Quando quebramos, a sensação é de que as regras do mundo não se aplicam a nós. Nós transcendemos a isso. O mundo se torna pequeno por um instante e nós conseguimos coloca-lo em nossa mão. Essa sensação é a nossa grande locomotiva. Nos conduz a ir além e a tentar de novo quebrar nossas marcas. eu mesmo quebrei o recorde mundial e, dez minutos depois, quebrei meu próprio recorde. Eu superei o mundo inteiro e me superei na sequencia. A sensação disso é incrível.

Voltamos pra casa muitas vezes com a pior realidade possível: sem aqueles que amamos, sem dinheiro, pois a viagem consumiu todos os nossos recursos, doentes com dores físicas e emocionais e problemas neurológicos. Muitas vezes essas questões somadas nos coloca em cheque e nos faz repensar sobre toda nossa vida. A gente inicia um processo de mudança e realocação de tudo em nossa vida: carreira profissional, de atleta, de vida. É um processo doloroso, difícil, solitário e, sem sombra de dúvidas, bem diferente do que o grande público imagina que seria: glória, festas e comemorações.

Esse processo precisa acontecer. A barra perde o significado e coloca todo seu projeto de vida (esportivo e profissional) em dúvida. Você precisa entender o que tudo aquilo significou pra sua vida. Essa situação necessita de ajuda de um terapeuta e de médicos que estão do seu lado pra te ajudar. Mas a decisão final, como sempre, é sua. Você que tem que entender o que você se tornou e quais são suas escolhas a partir dai. 

Nessa hora, tudo ganha uma importância relativa. É preciso reorganizar sua relação com todas as áreas de sua vida. Entender o que faz sentido e o que não faz e reavaliar o conceito de amor (sobre pessoas, sobre o esporte e sobre suas relações familiares). 

O tempo passa. As coisas vão clareando e as relações com tudo vão ocupando um novo lugar. Com isso, a aversão a barra some. Ser um powerlifter novamente volta a ter um peso aceitável na sua vida mesmo que sua relação com todas as áreas do esporte tenham mudado. Poder contar com seus amigos é algo importante e ajuda nesse processo. O apoio de outras pessoas que também passaram por situações parecidas ajuda muito também.

Entender o que eu me tornei me trouxe ao final dessa reflexão com uma certeza apenas: sou um powerlifter. O resto terá que entender, aceitar e, principalmente, se adequar a essa nova realidade. Isso norteará minhas decisões profissionais (que voltaram a incluir um doutoramento) e minhas decisões pessoas e afetivas. E que os deuses de Asgard estejam olhando por mim nessa jornada que culminará com o encontro com a mais bela das divindades se eu assim for merecedor: uma Valkyria que me guiará ao salão de Odin para que minha vida de guerreiro tenha valido a pena. Que venha 2015 e o recorde histórico.






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